terça-feira, 13 de outubro de 2015

Cultura Alimentar: contribuições da antropologia da alimentação

VIVIAN BRAGA
Saúde em Revista 37
CULTURA ALIMENTAR:CONTRIBUIÇÕESDAANTROPOLOGIADAALIMENTAÇÃO
Cultura Alimentar:
contribuições da antropologia da alimentação
Food Culture: contributions from
the anthropology of food
RESUMO Na década de 90, cresceu a valorização do respeito à cultura alimentar na construção da noção da segurança alimentar e nutricional
(SAN). Nesse sentido, o presente artigo explora a noção de cultura alimentar e o modo como ela é tratada no debate sobre segurança alimentar
e nutricional. A abordagem teórica utilizada considera o conceito de cultura alimentar da antropologia e o papel da cultura nas práticas de alimentação. Dois aspectos são ressaltados. Primeiro, os significados da
alimentação, principalmente aqueles relacionados às identidades de grupos sociais, que é ponto central na discussão sobre cultura alimentar. Segundo, o papel da cidadania, a qual é prerrogativa para a segurança
alimentar e nutricional.
Palavras-chave CULTURA ALIMENTAR SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO.
ABSTRACT During the nineties, respect for alimentary culture gained
importance in the building of the Food and Nutritional Security Policy
(SAN) notion. In that sense, this article analyses the notion of alimentary
culture and the way it is treated in the debate on Food and Nutritional
Security. The theoretical approach considers the anthropological concept
of alimentary culture and the role of culture in food practices. Two aspects
are emphasized. First, the meanings offood, specifically those related to the
social groups’ identities, which is the central point in the alimentary culture
debate. Second, the role of citizenship, which is the prerogative for Food
and Nutritional Security.
Keywords ALIMENTARY CULTURE FOOD AND NUTRITIONAL SECURITY
ANTHROPOLOGY OF FOOD.
V IVIAN BRAGA *
Antropóloga e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas (IBASE/RJ)
*Correspondências: Rua José Bonifá-
cio, 61, ap. 502, São Domingos,
24210-230, Niterói/RJ
vbraga@ibase.br
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INTRODUÇÃO
m 2003, o combate à fome assume centralidade nas questões políticas do Brasil, com o
governo Lula. A partir de então, o conceito
de segurança alimentar e nutricional ganha visibilidade e força, no sentido de nortear o desenho
das políticas voltadas para a erradicação da fome.
Conceitualmente, segurança alimentar e nutricional (SAN) exprime a compreensão da alimentação enquanto um direito humano que deve
ser garantido pelo Estado. Implica a garantia de
todos(as) a alimentos básicos de qualidade e em
quantidade suficiente, de modo permanente e
sem comprometer o acesso a outras necessidades
essenciais. O conceito também prescreve práticas
alimentares saudáveis, de modo a contribuir para
uma existência digna em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana.* A essa
definição somam-se outros aspectos que vêm sendo debatidos amplamente pelos militantes e/ou
acadêmicos que trabalham com SAN. Entre esses
aspectos, cabe citar a soberania alimentar,** a defesa da sustentabilidade do sistema agroalimentar
baseado no uso de tecnologias ecologicamente
sustentáveis e, por fim, a questão da preservação
da cultura alimentar.***
Atualmente, os debates acerca do conceito de
SAN visam sua qualificação, do mesmo modo que
pretendem qualificar as ações que o envolvem.
Isso pode ser percebido nos fóruns de debates da
sociedade civil organizada, nas discussões envolvendo os governos e na atuação dos Conselhos
de Segurança Alimentar e Nutricional. O expressivo número de pesquisas acadêmicas na área, decorrentes do aumento do incentivo das
instituições financiadoras para a realização de trabalhos sobre SAN, também indica a relevância do
tema.****
Um dos temas da SAN que passam por esse
processo de qualificação é o tema da cultura alimentar. Nesse contexto, o presente artigo propõe
uma reflexão sobre a noção de cultura alimentar
e sua inserção nos debates sobre a SAN. Em primeiro lugar, aborda-se o conceito de cultura alimentar e o papel da cultura na alimentação.
Chama-se atenção para os significados da alimentação, principalmente aqueles que traduzem a
identidade de um grupo social – questão central
do debate sobre cultura alimentar, bem como daqueles acerca de cidadania, prerrogativa da segurança alimentar e nutricional.
A seguir, mostra-se como os símbolos e significados que compõem a cultura agem sobre a alimentação. Discute-se a distinção entre o que é
alimento e o que é comida. Trata-se das preferências alimentares, não apenas como substância alimentar, mas, sobretudo, como um modo, um
estilo, um jeito de se alimentar. Jeito de comer
que define não só aquilo que é ingerido como
também aquele que o ingere. Assim, formação
das preferências alimentares e da identidade são
elementos socioculturais distintos das percepções
nutricionais e econômicas acerca da alimentação.
Esse é o enfoque dos estudos antropológicos sobre a temática alimentar.
Finalmente, apresenta-se como os estudos antropológicos sobre alimentação podem contribuir
para o desenho das políticas de segurança alimentar e nutricional.
OQUE É CULTURA ALIMENTAR?
A proposta desta seção é tratar dos determinantes culturais para a alimentação. Para isso,
busca-se melhor precisar o que é cultura alimentar, a partir de algumas abordagens antropológicas. Mais especificamente, pretende-se apontar
que papel a cultura desempenha na alimentação
humana.
Na antropologia, a cultura pode ser entendida
como umsistema simbólico, ou seja, um conjunto
de mecanismos de controle, planos, receitas, regras e instruções que governam o comportamento humano.9 Esses símbolos e significados são
* Definição extraída do documento oficial brasileiro preparado para a Cúpula Mundial de Alimentação (CMA) em Roma, 1996.
** Soberania alimentar é o direito dos países definirem suas próprias políticas e estratégias de produção, distribuição e consumo de
alimentos. (Cf. projeto Fome Zero. Uma proposta de política de segurança alimentar para o Brasil. Instituto da Cidadania, São
Paulo, out. 2001).
***O tema cultura alimentar surge no debate da segurança alimentar e nutricional como algo a ser respeitado. Segundo o conceito,
“Todo país deve ser soberano para assegurar sua segurança alimentar, respeitando as características culturais de cada povo, manifestadas no ato de se alimentar.” Definição extraída do documento oficial brasileiro preparado para aCMA, em Roma, 1996.
**** No ano de 2003, o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) disponibilizou cerca de nove milhões de reais para projetos de pesquisa de interface com a segurança alimentar e nutricional.
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partilhados entre os membros do sistema cultural,
assumindo um caráter público e, portanto, não
individual ou privado. Tal abordagem aceita a crí-
tica de Marshal Sahlins16 à idéia de que a cultura
é formulada por meio da atividade prática e do
interesse utilitário. Para esse antropólogo, a cultura define a vida não por meio das pressões materiais impostas pelo cotidiano, mas de um sistema
simbólico. Complementa essa concepção o argumento de Mary Douglas5 de que as regras que
constituem o sistema simbólico são, em sua formulação, arbitrárias e possuem uma nítida inten-
ção de disciplinar o comportamento humano.
À luz dessas afirmações, pode-se afirmar que
nossos hábitos alimentares fazem parte de um sistema cultural repleto de símbolos, significados e
classificações, de modo que nenhum alimento
está livre das associações culturais que a sociedade lhes atribui. Nesse caminho, vale dizer que essas associações determinam aquilo que comemos
e bebemos, o que é comestível e o que não o é.
Símbolos, significados, situações, comportamentos e imagens que envolvem a alimentação
podem ser analisados como um sistema de comunicação, no sentido de que comunicam sobre a
sociedade que se pretende analisar.5
É possível, ainda, argumentar que a cultura
alimentar é constituída pelos hábitos alimentares
em um domínio em que a tradição e a inovação
têm a mesma importância.11 Ou seja, a cultura
alimentar não diz respeito apenas àquilo que tem
raízes históricas, mas, principalmente, aos nossos
hábitos cotidianos, que são compostos pelo que é
tradicional e pelo que se constitui como novos
hábitos.
Um outro aspecto da cultura alimentar referese aquilo que dá sentido às escolhas e aos hábitos
alimentares: as identidades sociais. Sejam as escolhas modernas ou tradicionais, o comportamento
relativo à comida liga-se diretamente ao sentido
que conferimos a nós mesmos e à nossa identidade social. Desse modo, práticas alimentares revelam a cultura em que cada um está inserido, visto
que comidas são associadas a povos em particular.11 No Brasil, por exemplo, o arroz e o feijão
são traços de nossa identidade nacional, pois são
consumidos diariamente, de norte a sul do país,
por milhões de brasileiros. No plano regional, há
alimentos que funcionam como demarcadores
identitários regionais, ou seja, pratos que estão associados à sua região de origem: o churrasco gaú-
cho, o vatapá e o acarajé baianos, o pão-de-queijo
mineiro, entre outros.10
O PAPEL DA CULTURA NA ALIMENTAÇÃO
“Toda substância nutritiva é alimento, mas
nem todo alimento é comida.” A afirmação de
Da Matta remete ao aspecto cultural da alimenta-
ção e, por conseguinte, àquilo que a transforma
emcomida. A partir da diferenciação estabelecida
pelo autor entre alimento e comida, é possível verificar o papel da cultura na alimentação.
Alimento é algo universal e geral. Algo que diz respeito a
todos os seres humanos: amigos ou inimigos, gente de
perto e de longe, da rua ou de casa, do céu e da terra.
Mas a comida é algo que define um domínio e põe as
coisas em foco. Assim, a comida é correspondente ao
famoso e antigode-comer, expressão equivalente a refei-
ção, como de resto é a palavra comida. Por outro lado,
comida se refere a algo costumeiro e sadio, alguma coisa
que ajuda a estabelecer uma identidade, definindo, por
isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa. (Da Matta,4 p.
22)
Portanto, o que se come, quando, com quem,
por que e por quem é determinado culturalmente, transformando o alimento (substância nutritiva) em comida. Comida de criança, comida de
domingo, comida de festa etc. Esses são exemplos
de classificações dadas aos alimentos. E ainda,
como diria Barthes: 1 “Cada situação possui a sua
própria situação alimentária”. Cabe citar, como
exemplo, as particularidades das comidas de festa. Os docinhos tipicamente servidos em festas de
crianças, casamentos etc. revelam a presença portuguesa em nossa cozinha.8
Um outro aspecto do papel da cultura na alimentação está na formação do gosto. Experiências de culturas em particular afetam a maneira
como os indivíduos concebem e classificam as
qualidades do gosto e como se formam as preferências pelos sabores (doce, amargo, salgado, picante etc.) de populações e individualmente.
Além disso, em muitos sistemas culturais, o gosto e o olfato identificam e hierarquizam as classes de alimentos naquilo que é comestível em
oposição ao que não é. De igual maneira, as propriedades visuais e de textura são outras características sensoriais que determinam se os
alimentos são apropriados ou não dentro uma
sociedade. Assim, a textura e o sabor constituem, em boa medida, o que é familiar nos alimentos e o que pode influir na aceitação de
novos alimentos.13 As características visuais,
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como a cor, forma e aparência de conjunto, também afetam a aceitabilidade e as preferências alimentares, pois configuram aspectos do
simbolismo alimentar. Sobre essa dimensão simbólica, Bourdieu (1989) afirma que as pessoas e
os extratos sociais se distinguem pela maneira
como as pessoas usam os bens materiais e simbólicos de uma sociedade de acordo com o acesso a esses bens, dando sentido ao mundo social.
Sobre as propriedades de textura, Barthes1
chama atenção para o importante papel que ela
ocupa na seleção dos artigos alimentares. Na cultura ocidental, por exemplo, há uma oposição
simbólica que determina a escolha por parte de
classes sociais e de indivíduos dentro das classes.
Essa oposição seria entre os alimentos duros, crus
e ásperos, de um lado, e os alimentos suaves,
brandos e doces, de outro.
Na sociedade brasileira, destaca-se a preferência pelo o que é cozido em detrimento do que é
cru. Aqui, o cozido se apresenta em oposição ao
que é cru, da mesma forma que alimento está
para comida. Nesse sentido, o alimento cozido é
algo social por definição.4 Cabe ressaltar a importância social do cozido enquanto um prato em
nosso cardápio, bem como sua simbologia de
congregação, expressada na mistura de variedade
dos artigos alimentares, num mesmo prato, servidos em ocasiões que envolvem comensalidade.
A história do gosto liga-se à história do cotidiano em suas sutilezas e àsestruturas sociais, culturais e ideológicas. Esse argumento está ancorado
em Brillart-Savarin2 que, ao escrever a obraFisiologia do Gosto, aponta caminhos socioculturais
de compreensão para tal questão que, a princípio,
parece estar apenas sobre o domínio fisiológico.
Em termos mais gerais, procurou-se demonstrar que o significado simbólico e a significação
nutricional dessas dimensões variam segundo o
contexto cultural, assim como a inclinação individual em obedecer as regras impostas pela cultura.
QUESTÕES ANTROPOLÓGICAS GERAIS
A alimentação vem sendo analisada sob várias
abordagens independentes e ao mesmo tempo
complementares: a abordagem econômica, na
qual a relação entre a oferta e a demanda, o abastecimento, os preços dos alimentos, renda e acesso aos alimentos são os principais componentes;
aabordagem nutricional, com ênfase na composi-
ção dos alimentos, na preocupação com a saúde e
com o bem-estar de grupos e indivíduos; a abordagem social, voltada para as associações entre a
alimentação e a organização social do trabalho, a
diferenciação social do consumo, os ritmos e estilos de vida; a abordagem cultural, interessada nos
gostos, hábitos, tradições culinárias, representa-
ções, identidades práticas, preferências, repulsões, ritos e tabus, isto é, no aspecto simbólico da
alimentação.
A observação reforça o argumento de que comer não é apenas uma mera atividade biológica.
Do mesmo modo, suas razões não são estritamente econômicas. A comida e o comer são, acima de tudo, fenômenos sociais e culturais e a
nutrição, um assunto fisiológico e de saúde. Nesse caminho, vale o argumento de Barthes,1 para
quem as unidades alimentares que rodeiam a alimentação e que normalmente orientam o comportamento e as decisões dos consumidores – as
socioculturais – são muito mais sutis que as unidades, normalmente manejadas por nutricionistas
e economistas.*
No entanto, a comida, enquanto tal, foi menos interessante para a antropologia do que as
suas implicações sociais. Dos anos 30 aos 60, o
tema aparece em monografias sempre atrelado
aos capítulos sobre sobrevivência e economia doméstica. Somente em 1966, nas obras de Raymond & Rosemery Firth, é que a comida assume
o papel central. Isso talvez porque a comida e sua
preparação fossem vistas como trabalho de mulher, e a maioria dos antropólogos fossem homens, ou porque o estudo da comida fosse
considerado prosaico e pouco importante, comparado a outros, como a guerra.11
As análises antropológicas se propõem, em
grande medida, ao estudo de hábitos alimentares.
Daí surgem as especificidades atribuídas a cada
estudo para o desvendamento da cultura e das
culturas alimentares, revelando comportamentos
diversos centrados na comida. Ainda assim, até os
anos 80, o tema não era relevante para a antropologia. A partir da década de 90, ocorrem mudan-
ças significativas nesses estudos, ligados
principalmente ao forte crescimento de um mercado mundial de alimentos.
* Essa afirmação não exclui a possibilidade, ou mesmo a necessidade, da troca de percepções entre os campos de conhecimento
referidos, sendo essa troca uma diretriz metodológica fundamental para os estudos sobre alimentação.
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Nesse contexto, vale a pena citar os objetos de
alguns estudos que se ocupam do tema. São eles:
a investigação da alimentação de populações humanas e grupos sociais e a relação com seu meio
ambiente; a construção simbólica das culturas; as
relações e estruturas sociais das sociedades; os determinantes socioculturais do consumo de alimentos, com ênfase doméstica às investigações
dietéticas e de nutrição; e, por último, as relações
históricas e evolutivas entre dieta e consumo no
mundo e em culturas específicas.
A existência de diferenças entre o bem-estar
nutricional de diferentes povos, ou mesmo dentro de uma mesma sociedade, também é considerada. Isso é feito com base nas disponibilidades
ecológicas e do mercado de alimentos, e as diversas questões culturais que restringem ou limitam
o acesso aos alimentos por grupos ou indivíduos.
Conseqüências nutricionais e médicas das pautas
culturais de consumo particulares, incluindo as
pautas de divisão dos alimentos entre os membros do sistema cultural, também são consideradas. Embora a abrangência dos temas seja
notável, essas possibilidades de estudos ainda não
foram suficientemente exploradas.
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA CULTURA
ALIMENTAR PARA A SAN
Entre os aspectos que compõem o conceito
de segurança alimentar e nutricional, sublinhase a preocupação com o respeito e a preservação
da cultura alimentar de cada povo. Nesse sentido, cada país deve ter condições de assegurar
sua alimentação, sem que lhe seja imposto um
padrão alimentar estranho às suas características
e tradições.
Essa concepção surge como uma reivindica-
ção feita por grupos que percebem suas práticas
alimentares ameaçadas pelos efeitos da globaliza-
ção. Entre os efeitos nocivos, destaca-se a perda
da soberania desses países em decidir o que produzir e comer. Também é denunciada a tendência
global à massificação do gosto alimentar, observada a partir da preferência dos consumidores a
produtos industrializados em detrimento dos
produtos in natura. No Brasil, como em outros
países em desenvolvimento, é possível perceber a
ocorrência desse processo de massificação. Nos
últimos 30 anos, os hábitos alimentares dos brasileiros mudaram bastante. Essas mudanças são
conseqüência dos variados processos de transformação relativos à produção e ao consumo de
alimentos. A crescente padronização e homogeneização da alimentação por meio da produção
industrial em massa e o aumento de monoculturas (como o caso da soja, no Brasil) geraram, ao
longo das ultimas décadas, o desmantelamento
dos sistemas locais de produção, impactando diretamente na distribuição e consumo de alimentos. Além disso, esses processos afetam a
diversidade alimentar e, conseqüentemente, o
direito de cada pessoa ou grupo de exercer a livre escolha sobre o que consumir. Somam-se a
essas transformações aquelas ligadas ao processo
de urbanização e o ritmo de vida das cidades, regiões metropolitanas e periferias metropolitanas,* onde prevalece o consumo alimentar fora
do domicílio.
Diante desse quadro, cabe destacar a importância dos estudos de antropologia da alimenta-
ção, que possibilitam a compreensão dos nossos
padrões alimentares, suas origens, composição,
seus valores simbólicos e uma série de aspectos
que nos auxiliam na conscientização sobre o que
somos por meio do que comemos. Isso significa
dizer que a análise da cultura alimentar permite
refletir sobre a especificidade dos diferentes campos que interagem quando práticas alimentares
estão em foco. Por exemplo: a identidade étnica
pode estar estreitamente relacionada a uma tradi-
ção culinária particular.5 Além disso, é possível
resgatar alimentos que faziam parte do cardápio
dos antepassados e que, hoje, estão relegados a
um segundo plano. Modos de preparo, ingredientes, condimentos e uma série de elementos típicos da culinária de grupos determinados podem
ser recuperados a partir desses estudos. As pesquisas sobre alimentação contribuem, ainda, para
a valorização da diversidade alimentar, reforçando aspectos referentes à saúde e à nutrição.
No âmbito da segurança alimentar e nutricional, ressalta-se a relevância dos estudos das estruturas alimentares para a compreensão dos riscos
ligados à adoção de práticas alimentares novas e
distintas das tradicionais. Isso implica afirmar que
a elaboração de políticas específicas deve considerar as características culturais dos grupos beneficiados. É o caso, por exemplo, das políticas voltadas
* A grande maioria da população brasileira (81%) reside, hoje, nas cidades (Dado do Censo 2000 – IBGE).
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para remanescentes de quilombos, indígenas e
caiçaras. Nesse sentido, o fracasso de algumas políticas públicas pode estar associado à ignorância
dos seus executores. Ao desconhecer a realidade
cultural de uma determinada população, eles criam políticas que não atendem adequadamente às
necessidades desses grupos.
Veja-se o que ocorreu, por exemplo, com o
programa do leite e óleo. Ligado à Secretaria de
Saúde do Estado do Rio de Janeiro, o programa
visa atender famílias em situação de fome e desnutrição. Nesse programa, são distribuídos leite
em pó e óleo de soja para que sejam misturados,
já que essa mistura proporciona um aumento calórico. Assim, é explicado às pessoas atendidas
pelo programa que o óleo facilita a absorção de
nutrientes do leite. No entanto, grande parte das
mães não prepara essa mistura. Por quê? Simplesmente porque não temos o hábito de beber leite
com óleo, mas, sim, beber o leite e usar o óleo
para fritar, cozinhar etc. Esse é um caso de inefici-
ência de uma política pública que não considera
as práticas alimentaresnativas.
Questões relativas à cultura da fome também
precisam ser trabalhadas em cenários como o do
Brasil, em que a fome se apresenta como um resultado fisiológico de um processo histórico, polí-
tico, econômico e cultural. Sobre esse ponto,
refiro-me a situações em que a fome é sentida e
associada aos mitos ou ritos de uma sociedade,
deslocando o sentido de compreensão da fome
como um problema de caráter social para um
problema espiritual ou religioso. É imprescindível
o melhor entendimento sobre os significados atribuídos à fome por aqueles que a sentem, bem
como sobre as estratégias coletivas e individuais
para superá-la. E, ainda, os quadros referentes ao
contexto da alimentação mundial. Nele assistimos a um deslocamento de pessoas e alimentos,
uma separação crescente de produtores e consumidores, uma tendência cada vez mais em se consumir produtos industrializados – tendência esta
que afeta o cotidiano e as práticas alimentares de
toda a humanidade.
Por fim, não esgotando as possibilidades de
estudos acerca da cultura alimentar e suas contribuições para aSAN, destaco a importância da questão de gênero no conteúdo desse tema. Vários
estudos antropológicos apontam que a mulher estabelece uma relação estreita com a alimentação,
em seu aspecto cultural. Destacam-se os estudos
que abordam a relação entre a comida e a imagem do corpo; outros tratam da relação entre domesticalidade e liberação das mulheres; outros,
ainda, das ligações entre comida e autoidentifica-
ção com gênero. Entre esses estudos, sublinhamse algumas definições: 1) a mulher vista como
provedora dos alimentos para a família, agindo
como porteiro; * 2) ela é compreendida a partir
da noção de feminização da pobreza, que evidencia que a fome, assim como outros problemas sociais, atinge mais mulheres do que homens.7 Para
além desses, estão outros estudos que apontam
para o lugar ambíguo que a mulher ocupa na
questão da SAN. Ela continua como responsável
pelo ambiente doméstico e, daí, pela alimentação.
Entretanto, no campo político, não ocupa arenas
importantes de decisão como sujeito de políticas
que afetam seu cotidiano.14 Usualmente, tais políticas ignoram as experiências construídas pelas
mulheres ao exercerem a responsabilidade pela
amamentação e a alimentação da família. A partir
desse quadro, é preciso pensar o papel da mulher
e o lugar que ela ocupa nas decisões políticas sobre SAN.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se dizer que as situações em relação à
comida são aprendidas bem cedo e que o que
aprendemos está inserido em um corpo substantivo de materiais culturais historicamente derivados.11 A comida e o comer assumem, assim, uma
posição central no aprendizado social por sua natureza vital, essencial e cotidiana. Esse aprendizado, inserido em diferentes gramáticas culturais,
determina as categorizações dos diferentes alimentos por intermédio de princípios de exclusão
e associação entre alimentos, das prescrições e
proibições tradicionais e religiosas, dos ritos da
mesa e da cozinha, ou seja, de toda a estrutura da
alimentação cotidiana. Os diferentes usos de cada
um dos alimentos, sua ordem, sua composição,
suas combinações, a hora e o número das refei-
ções diárias, tudo está codificado de um modo
preciso. Isso influi na eleição, na preparação e no
consumo dos alimentos, sendo resultado de um
processo social e cultural cujo significado e cuja
* Expressão empregada por Rossi para designar o papel da mulher como aquela que determina os alimentos que entram na casa
para o consumo posterior.
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razão devem ser buscados na história de cada sociedade ou cultura. De igual maneira, quando se
fala em alimentação, devem ser observados os
contextos marcados pela sua ausência. Em outras
palavras, deve-se lançar luz sobre a fome e seus
significados, bem como as estratégias de sobrevivência criadas pelos grupos vulneráveis para suprir a fome, que podem contribuir muito para a
compreensão de suas causas e, posteriormente,
sua erradicação.
No entanto, o conhecimento sobre esses aspectos ainda é muito incipiente. A experiência
brasileira revela o desconhecimento, por parte de
seu povo, de questões importantes ligadas à alimentação. O que comemos, por que comemos, a
origem dos alimentos, suas conseqüências para a
saúde etc. são assuntos pouco debatidos. Obviamente, uma população mal alimentada e com
fome não se detém sobre tais questões. Todavia,
os debates promovidos pela sociedade no Brasil e
o papel protagonista que o país ocupa nessa temática ensinam que há alternativas. Talvez nossa
fragilidade alimentar seja nossa maior força. Ela
traz a indignação e, conseqüentemente, a energia
necessária para se debater e produzir conhecimento sobre o tema.
A antropologia da alimentação se propõe,
grosso modo, a realizar esses estudos. E, apesar
das possibilidades apresentadas, os estudos dos
antropólogos tiveram e têm, ainda, pouco impacto sobre as políticas alimentares e nutricionais,
talvez pelo fato de estarem distantes de questões
que, de fato, envolvem diretamente a política, ou
seja, que proporcionariam o melhor desenho de
políticas por meio da compreensão sobre as culturas alimentares. São necessários estudos que
apontem as causas socioculturais, políticas e econômicas que estão na raiz das mudanças nas pautas alimentares e nutricionais de cada país, em
todo mundo.13 Ou como as famílias, grupos ou
indivíduos organizam seus recursos alimentares
potenciais. Mais especificamente, pesquisas que
apontem os efeitos dos diferentes tipos de políticas alimentares e econômicas sobre a escolha dos
alimentos, quais alimentos são consumidos, assim
como o significado desse consumo. E, ainda, vemos hoje a necessidade de estudos que apontem
para uma compreensão sobre as enfermidades da
civilização relacionadas com a dieta, como é o
caso da obesidade, da hipertensão e da diabete –
sendo esta última relacionada a possíveis conexões com o gosto.
Essas são, portanto, algumas das possibilidades de estudos sobre a alimentação. Possibilidades
que não se esgotam neste artigo nem no presente,
tendo em vista o caráter dinâmico da cultura e as
mudanças culturais que esse dinamismo proporciona. No entanto, para a questão aqui em foco,
vale sublinhar uma característica cultural que
pouco mudou durante toda a história de nossa civilização, qual seja, o importante papel que a mulher desempenha na alimentação. Em termos
objetivos, ocorreram mudanças ligadas ao ritmo
de vida moderno impactando sobre o ambiente
doméstico e familiar, bem como a conquista pela
mulher de espaços antes não ocupados. Entretanto, eles não foram suficientes para romper a estreita relação estabelecida entre as mulheres e a
alimentação. Relação simbólica e concreta observada nas situações mais cotidianas. Portanto, destacar esse problema significa ressaltar a relevância
que a questão da mulher deve assumir não só nos
estudos sobre cultura alimentar, mas em todos os
temas ligados à SAN.
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