VIVIAN BRAGA
Saúde em Revista 37
CULTURA ALIMENTAR:CONTRIBUIÇÕESDAANTROPOLOGIADAALIMENTAÇÃO
Cultura Alimentar:
contribuições da antropologia da alimentação
Food Culture: contributions from
the anthropology of food
RESUMO Na década de 90, cresceu a valorização do respeito à cultura alimentar na construção da noção da segurança alimentar e nutricional
(SAN). Nesse sentido, o presente artigo explora a noção de cultura alimentar e o modo como ela é tratada no debate sobre segurança alimentar
e nutricional. A abordagem teórica utilizada considera o conceito de cultura alimentar da antropologia e o papel da cultura nas práticas de alimentação. Dois aspectos são ressaltados. Primeiro, os significados da
alimentação, principalmente aqueles relacionados às identidades de grupos sociais, que é ponto central na discussão sobre cultura alimentar. Segundo, o papel da cidadania, a qual é prerrogativa para a segurança
alimentar e nutricional.
Palavras-chave CULTURA ALIMENTAR – SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL – ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO.
ABSTRACT During the nineties, respect for alimentary culture gained
importance in the building of the Food and Nutritional Security Policy
(SAN) notion. In that sense, this article analyses the notion of alimentary
culture and the way it is treated in the debate on Food and Nutritional
Security. The theoretical approach considers the anthropological concept
of alimentary culture and the role of culture in food practices. Two aspects
are emphasized. First, the meanings offood, specifically those related to the
social groups’ identities, which is the central point in the alimentary culture
debate. Second, the role of citizenship, which is the prerogative for Food
and Nutritional Security.
Keywords ALIMENTARY CULTURE – FOOD AND NUTRITIONAL SECURITY –
ANTHROPOLOGY OF FOOD.
V IVIAN BRAGA *
Antropóloga e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas (IBASE/RJ)
*Correspondências: Rua José Bonifá-
cio, 61, ap. 502, São Domingos,
24210-230, Niterói/RJ
vbraga@ibase.br
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INTRODUÇÃO
m 2003, o combate à fome assume centralidade nas questões políticas do Brasil, com o
governo Lula. A partir de então, o conceito
de segurança alimentar e nutricional ganha visibilidade e força, no sentido de nortear o desenho
das políticas voltadas para a erradicação da fome.
Conceitualmente, segurança alimentar e nutricional (SAN) exprime a compreensão da alimentação enquanto um direito humano que deve
ser garantido pelo Estado. Implica a garantia de
todos(as) a alimentos básicos de qualidade e em
quantidade suficiente, de modo permanente e
sem comprometer o acesso a outras necessidades
essenciais. O conceito também prescreve práticas
alimentares saudáveis, de modo a contribuir para
uma existência digna em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana.* A essa
definição somam-se outros aspectos que vêm sendo debatidos amplamente pelos militantes e/ou
acadêmicos que trabalham com SAN. Entre esses
aspectos, cabe citar a soberania alimentar,** a defesa da sustentabilidade do sistema agroalimentar
baseado no uso de tecnologias ecologicamente
sustentáveis e, por fim, a questão da preservação
da cultura alimentar.***
Atualmente, os debates acerca do conceito de
SAN visam sua qualificação, do mesmo modo que
pretendem qualificar as ações que o envolvem.
Isso pode ser percebido nos fóruns de debates da
sociedade civil organizada, nas discussões envolvendo os governos e na atuação dos Conselhos
de Segurança Alimentar e Nutricional. O expressivo número de pesquisas acadêmicas na área, decorrentes do aumento do incentivo das
instituições financiadoras para a realização de trabalhos sobre SAN, também indica a relevância do
tema.****
Um dos temas da SAN que passam por esse
processo de qualificação é o tema da cultura alimentar. Nesse contexto, o presente artigo propõe
uma reflexão sobre a noção de cultura alimentar
e sua inserção nos debates sobre a SAN. Em primeiro lugar, aborda-se o conceito de cultura alimentar e o papel da cultura na alimentação.
Chama-se atenção para os significados da alimentação, principalmente aqueles que traduzem a
identidade de um grupo social – questão central
do debate sobre cultura alimentar, bem como daqueles acerca de cidadania, prerrogativa da segurança alimentar e nutricional.
A seguir, mostra-se como os símbolos e significados que compõem a cultura agem sobre a alimentação. Discute-se a distinção entre o que é
alimento e o que é comida. Trata-se das preferências alimentares, não apenas como substância alimentar, mas, sobretudo, como um modo, um
estilo, um jeito de se alimentar. Jeito de comer
que define não só aquilo que é ingerido como
também aquele que o ingere. Assim, formação
das preferências alimentares e da identidade são
elementos socioculturais distintos das percepções
nutricionais e econômicas acerca da alimentação.
Esse é o enfoque dos estudos antropológicos sobre a temática alimentar.
Finalmente, apresenta-se como os estudos antropológicos sobre alimentação podem contribuir
para o desenho das políticas de segurança alimentar e nutricional.
OQUE É CULTURA ALIMENTAR?
A proposta desta seção é tratar dos determinantes culturais para a alimentação. Para isso,
busca-se melhor precisar o que é cultura alimentar, a partir de algumas abordagens antropológicas. Mais especificamente, pretende-se apontar
que papel a cultura desempenha na alimentação
humana.
Na antropologia, a cultura pode ser entendida
como umsistema simbólico, ou seja, um conjunto
de mecanismos de controle, planos, receitas, regras e instruções que governam o comportamento humano.9 Esses símbolos e significados são
* Definição extraída do documento oficial brasileiro preparado para a Cúpula Mundial de Alimentação (CMA) em Roma, 1996.
** Soberania alimentar é o direito dos países definirem suas próprias políticas e estratégias de produção, distribuição e consumo de
alimentos. (Cf. projeto Fome Zero. Uma proposta de política de segurança alimentar para o Brasil. Instituto da Cidadania, São
Paulo, out. 2001).
***O tema cultura alimentar surge no debate da segurança alimentar e nutricional como algo a ser respeitado. Segundo o conceito,
“Todo país deve ser soberano para assegurar sua segurança alimentar, respeitando as características culturais de cada povo, manifestadas no ato de se alimentar.” Definição extraída do documento oficial brasileiro preparado para aCMA, em Roma, 1996.
**** No ano de 2003, o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) disponibilizou cerca de nove milhões de reais para projetos de pesquisa de interface com a segurança alimentar e nutricional.
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CULTURA ALIMENTAR:CONTRIBUIÇÕESDAANTROPOLOGIADAALIMENTAÇÃO
partilhados entre os membros do sistema cultural,
assumindo um caráter público e, portanto, não
individual ou privado. Tal abordagem aceita a crí-
tica de Marshal Sahlins16 à idéia de que a cultura
é formulada por meio da atividade prática e do
interesse utilitário. Para esse antropólogo, a cultura define a vida não por meio das pressões materiais impostas pelo cotidiano, mas de um sistema
simbólico. Complementa essa concepção o argumento de Mary Douglas5 de que as regras que
constituem o sistema simbólico são, em sua formulação, arbitrárias e possuem uma nítida inten-
ção de disciplinar o comportamento humano.
À luz dessas afirmações, pode-se afirmar que
nossos hábitos alimentares fazem parte de um sistema cultural repleto de símbolos, significados e
classificações, de modo que nenhum alimento
está livre das associações culturais que a sociedade lhes atribui. Nesse caminho, vale dizer que essas associações determinam aquilo que comemos
e bebemos, o que é comestível e o que não o é.
Símbolos, significados, situações, comportamentos e imagens que envolvem a alimentação
podem ser analisados como um sistema de comunicação, no sentido de que comunicam sobre a
sociedade que se pretende analisar.5
É possível, ainda, argumentar que a cultura
alimentar é constituída pelos hábitos alimentares
em um domínio em que a tradição e a inovação
têm a mesma importância.11 Ou seja, a cultura
alimentar não diz respeito apenas àquilo que tem
raízes históricas, mas, principalmente, aos nossos
hábitos cotidianos, que são compostos pelo que é
tradicional e pelo que se constitui como novos
hábitos.
Um outro aspecto da cultura alimentar referese aquilo que dá sentido às escolhas e aos hábitos
alimentares: as identidades sociais. Sejam as escolhas modernas ou tradicionais, o comportamento
relativo à comida liga-se diretamente ao sentido
que conferimos a nós mesmos e à nossa identidade social. Desse modo, práticas alimentares revelam a cultura em que cada um está inserido, visto
que comidas são associadas a povos em particular.11 No Brasil, por exemplo, o arroz e o feijão
são traços de nossa identidade nacional, pois são
consumidos diariamente, de norte a sul do país,
por milhões de brasileiros. No plano regional, há
alimentos que funcionam como demarcadores
identitários regionais, ou seja, pratos que estão associados à sua região de origem: o churrasco gaú-
cho, o vatapá e o acarajé baianos, o pão-de-queijo
mineiro, entre outros.10
O PAPEL DA CULTURA NA